Há pouco mais de 40 anos veio a Portugal a Raínha britânica, o que constituiu motivo de festa e curiosidade e deu origem a muitas anedotas. Por exemplo, tendo ela estado dois dias no iate Britânia em frente de Setúbal onde se encontrou com o marido que regressara de longo cruzeiro, e tendo desembarcado na Praça do Comércio acompanhada pelas esposas do PR (Berta) e do MNE (Pita), não faltaram anedotas referindo os salmonetes que teria comido em Setúbal, e dizia-se, que vinha com a Pita mais aBerta.
Quando veio o Presidente do Brasil Café Filho, também houve anedotas. Hoje essas visitas são tão banais que não merecem a honra de anedotário.
Dizia-se que o humor dos portugueses não tinha limites e que, ao mínimo pretexto, aí estavam inúmeras anedotas (algumas incontáveis).
Nos últimos tempos essa veia murchou e temo-nos contentado com as graças do Herman, cuja estrela, segundo muitos críticos, tem vindo a perder brilho.
Porém, aquilo que está na idiossincrasia dum povo e na sua cultura ancestral, nunca se perde de todo e, quando menos se espera, os valores acordam da sua prolongada letargia ou hibernação e saltam para a luz do dia. E assim se prova que o humor dos portugueses não morreu. Existe.
Esta semana a acreditar no que se leu nos jornais, no que se ouviu na rádio e no que se viu e ouviu na televisão, houve duas anedotas que mereceram o espanto, a admiração e o aplauso de toda a plateia, de pé. Um senhor ministro, para provar que não há razões para pânico e que se pode viajar sem medo nos comboios suburbanos, teve a ousadia, a heroicidade de se arriscar a viajar num comboio da linha de Cascais. Acto intrépido, de grande bravura. Porém, os jornalistas acrescentaram que (e via-se na TV) ia acompanhado por «um batalhão de polícias». Na TV viam-se alguns uniformizados e outros que, indo à civil, não disfarçavam a sua profissão.
Foi uma boa anedota, para os portugueses se escangalharem a rir.
Mas não menos humorada foi uma outra acerca de um assalto, numa bomba de gasolina em que «duas ou três pessoas retiraram dez contos do bolso de um empregado da bomba» (certamente todo o dinheiro que tinha consigo), que mereceu ao mesmo ministro o esclarecido comentário de que não se devia ser «alarmista», havia que ter serenidade, pois aquele indivíduo apenas «foi sujeito a um acto alheio à sua vontade»
Seria para rir se estas anedotas não saíssem da boca de um governante que, por estatuto, era suposto ser responsável pela ordem pública e pela segurança geral dos cidadãos.
Por outro lado, e isto não é mesmo para rir, mas sim para lamentarmos o distanciamento entre a vida real e as nuvens em que vive o ministro. Este disse apenas dez contos, esquecendo-se, ou ignorando, quanto isso representa em percentagem do salário mensal do cidadão que foi assaltado. O ministro fará ideia do valor desse salário? Imaginará o sacrifício correspondente ao roubo desses dez contos? O atendedor da bomba de gasolina não tem salário de ministro, despesas de representação, ajudas de custo, telefone pago, viagens, carro, etc. etc.
Ouvimos na TV uma senhora idosa, que tinha sido assaltada, roubada e ferida, isto é, «sujeita a um acto alheio à sua vontade», perguntar «Sr ministro, e se isto acontecesse à sua mãe?»
Se um governante ou um seu familiar ficasse sem todo o dinheiro que levasse, mesmo que não fosse agredido? A reacção então seria outra, certamente!
Tenho muito respeito e admiração pela actriz Lídia Franco, principalmente agora, mas ainda bem que isto aconteceu a ela, pois por ser uma figura pública e ter tido a coragem de dar a cara, as autoridades parecem ter acordado e ser obrigadas a olhar para o problema, mesmo que o não fizessem com a frontalidade e a profundidade que uma tal situação social, de causas tão complexas e de repercussões tão graves merece.
É de lamentar que tenhamos de suportar anedotas de tão mau gosto e tanto desprezo pelas precárias condições de vida que nos são impostas. Por favor, sr. ministro, faça um esforço para acreditar que as suas palavras são ouvidas por pessoas que sabem pensar.
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