(Publicado no blogue Do Miradouro em 22 de Março de 2008)
Há dias, um colega bloguista, com ares de dedicado agente da Pide, escreveu, num comentário, que sabe quem sou mas queria que fosse eu a confessar. Ter de confessar é uma imposição do tipo Guantânamo, Tarrafal ou, simplesmente, Rua António Maria Cardoso, mas vou tentar aceitar este desafio.
O que sou? Será que quer saber o peso, a altura, a medida da cintura, do colarinho, do sapato?
Se quer saber o que faço e penso, vou tentar descrever o dia-a-dia do meu intelecto, no mundo sem poluição em que me instalei, pelo menos mentalmente. Vivo a 3 quilómetros a Sul de Gouveia em plena subida para a Serra da Estrela ao lado da estrada que vai para a nascente do Mondego e para as Penhas Douradas. A casa ou casebre onde passo as horas do dia em que não tenho que estar a vigiar o rebanho de cabras que tenho à minha responsabilidade, não tem as comodidades de um prédio urbano com luz, água, esgoto, gás. Mas mantenho-a limpa e com o mínimo de modernidade ao ponto de ter sido convidado a participar no anúncio da netcabo (ele há coisas fantásticas, não há?) de que todo o País gostou.
Os que se recordam desse anúncio, perguntarão como posso em tal casa ter computador e ligação à Internet. Muito facilmente. Tenho uma placa fotovoltaica na cobertura da casa e umas baterias que armazenam e reservam a energia para a noite e, durante o dia, no campo, para não gastar dinheiro em pilhas que ficavam muito caras, tenho uma pequena placa fotovoltaica que dá energia para o rádio de bolso que me mantém ligado ao mundo, através dos noticiários. Esta placa, para não me impedir os movimentos nem ocupar os braços, é transportada como mochila, o que me obriga a procurar estar, o mais possível, de costas para o sol ou, se parado por mais tempo, colocá-la no chão inclinada de forma a que os raios solares incidam nela perpendicularmente. Creio ter sido explícito quanto a energia.
Não transporto comigo o computador portátil, com receio de o danificar, quer pelo mau tempo, quer por quedas ou choques e principalmente, porque ele me distrairia da missão que me foi incumbida de vigiar as cabras. Sem ele, convivo mais livre e atentamente com os meus pensamentos que se debruçam, com o possível pormenor, sobre tudo aquilo que se passa no Mundo inteiro. Esses pensamentos chegam ao ponto de fazer conjecturas que acabam, muitas vezes, por se tornar realidade algum tempo depois. Isso vem confirmar que a humanidade pouco ou nada tem evoluído e o ser humano mantém as virtudes e os defeitos básicos de muitos milénios atrás. Daí, a previsibilidade dos acontecimentos para quem estiver atento e observar sem parti-pris, com isenção e análises apartidárias e imparciais.
Mas, depois desta panorâmica do meu dia-a-dia, a propósito da energia, vou agora tentar fazer uma descrição cronológica. Levanto-me cedo, mal começa no cimo da serra a surgir o alvor da manhã, muito antes de o Sol nascer. Dou uma olhada ao redil para ver se não há novidade, pois concluo das notícias que há por aí ladrões de gado que, durante a noite, carregam grande quantidade de rezes. Felizmente ainda não tive esse azar. Acendo o lume do canto da lareira e aqueço o leite para o pequeno almoço feito de broa de milho, de queijo caseiro e fruta da época e da região e, entretanto, ligo o computador portátil para ver os e-mails recebidos, pois tenho umas dezenas de correspondentes espalhados pelo mundo, como dizia no anúncio de que atrás falei. Dou uma volta pelos jornais online e vejo se tenho novos comentários no meu blog, aos quais respondo de imediato, como podem ver nas horas que neles constam. Entretanto fui comendo o pequeno almoço que tem de ser uma refeição com os ingredientes necessários para aguentar até ao fim da tarde, contando com o «almoço» que é apenas constituído por queijo caseiro, broa e leite ordenhado ali para o tarro.
Depois, lá vamos calmamente para a serra à procura de pasto por entre as fragas. Quando as cabras encontram algo mais apetitoso e abundante, sento-me olho atentamente para a paisagem a perder de vista com a senhora do Castelo e de Mangualde lá ao fundo, e as malditas chaminés de fábricas a sujar os ares com as suas fumaças, sempre com o som do rádio em fundo a não me deixar esquecer que o mundo não é só o meu pensamento mas desgraçadamente e com mais peso, são as tragédias do Iraque, do Sri Lanka, do Quénia, do Tibete, do Kosovo, etc.
Não se espantem, pois esta minha vida de pensador solitário mantém-me mais actualizado do que muitos dos nossos governantes que, fechados nas torres de marfim, rodeados de guarda-costas, de telefonistas e de assessores que lhes filtram toda a informação, vivem de ilusões totalmente alheias às realidades, como se tem visto nas áreas da Saúde, do Ensino, da Justiça, da Economia, das Finanças, das Obras do Jamé, etc.
Aqui, atento a tudo, sem paixões por qualquer opinião de «sábios», apenas socorrido pelos factos filtrados pela lógica e bom senso, consigo formular juízos que como atrás disse, até permitem fazer previsões que, muitas vezes, se tornam realidades. Apesar da minha natural modéstia, chego a pensar que para ser sábio não é preciso ter grandes, estudos, nem comprar diploma de engenheiro no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra, bastando usar o raciocínio e observar com atenção o que se pode ver e ouvir. Fora de vaidades, é na gente humilde dos rurais que encontramos os cérebros mais produtivos em pensamentos, simples na sua formulação, mas ricos de saber e senso prático. Não é apenas o António Aleixo, mas há muitos mais de quem pouco ou nada se fala.
A observação das minhas cabras, umas mais inteligentes do que as outras, mas todas com instintos bem desenvolvidos para sua defesa, sobrevivência quanto a alimentação e perigos, a sua ambição de poder para se imporem às outras, o respeito pela chefia, o espírito de grupo que me facilitam a minha obrigação de as manter juntas em autêntico rebanho, etc , esta observação é uma das fontes de saber e de reflexão. Por outro lado, a meteorologia é tratada por nós, rurais, quando bons observadores e habituados a pensar. E essa é uma das minhas tarefas do fim do dia, perscrutando o espaço para prever como estará o tempo no dia seguinte. Viver integrado no terreno, na vegetação e na atmosfera faz parte da globalidade dos interesses imediatos de um pastor que lhe dão um saber tão profundo que não estará ao alcance de qualquer urbano.
Regressado a casa e instalado o gado com as comodidades adequadas, preparo o jantar e vou contactar os amigos da Internet, sempre atentos ou viciados (!) que me enchem o Outlook de e-mails com lindos anexos, alguns com muito interesse cultural. Aproveito as últimas horas do anoitecer para colocar mais um tema para reflexão no blog, responder a algum comentário, e surfar um pouco pela blogosfera onde deixo comentários aqui e ali, porque ninguém visitará o meu se eu não deixar comentários nos outros. É o materialismo dos dias de hoje, principalmente entre os urbanos, em que muitos nada dão, só trocam, se tiverem interesse nisso!
Creio ter feito aqui a confissão que me é exigida pelo carrasco. Mas se ainda restam dúvidas, não tenha receio de perguntar concretamente. Ah esquecia-me de falar numa dor no tornozelo direito por ter escorregado numa fraga e feito um pequeno entorse. Mas as papas de linhaça estão a fazer efeito e, dentro de dias, estará bom.
Sócrates de novo
Há 52 minutos
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