quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Demissão de um chefe militar

(Enviado ao DN em 23 de Agosto de 2003)

O «Diário de Notícias» de 14/8/03 trazia na pág. 10, uma carta de Manuel Dias Martins sob o título «Sublevação de um chefe militar» que contem pontos de vista ingénuos ou ambiciosos. Embora seja considerado perda de tempo continuar a discutir-se se a palavra «confiança» foi ou não correctamente empregada, em vez de se analisar as verdadeiras razões que levaram o Sr. General a tomar a decisão tão difícil como corajosa, esta carta merece alguns reparos.

A carta diz que o General Viegas é inteligente porque se licenciou numa universidade, o que não deixa de fazer rir pela insinuação que lhe está implícita. Com efeito, para ser general, começou por se licenciar em Ciências Militares na Academia Militar e, depois, além de vários cursos de pós-graduação, tirou os cursos de promoção a capitão, de promoção a oficial superior, de estado-maior e superior de comando e direcção. É certo que além dessa preparação inerente à sua carreira, frequentou também a universidade, obtendo uma licenciatura, semelhante, aliás, à de alguns alferes milicianos que ele e todos os oficiais bem conheceram e de quem não têm grandes saudades. Portanto, quanto à insinuação de inteligência, parece que não há dúvidas, pois ela é intrínseca da pessoa e não se adquire com cursos.

Também a referida carta cita a Constituição de forma abusiva, pois o General Viegas não cometeu contra ela qualquer «grave desconsideração». Também não está provado que tenha havido «verdadeira inversão da cadeia de comando militar e constitucional». O general cumpriu as suas funções com toda a correcção o que foi, justamente salientado pelo ministro da Defesa, pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da República. Ou será que o autor da carta insinua que estas entidades, formalmente merecedoras de todo o respeito, estão a mentir quando falam? Se eles dizem o contrário daquilo que pensam como a carta insinua, então merecem a sua confiança!

Diz também a carta que o ministro da Defesa foi «legitimado pelo voto popular para, nos termos da Constituição, chefiar os militares». Ora, nos termos da lei (talvez da Constituição) o voto a que se refere era para escolher os representantes para a Assembleia da República. Se eu soubesse que o meu voto ia ser interpretado como confiança em P.P. para ser ministro da Defesa, possivelmente teria dado outra orientação à minha confiança.

Mas o mais grave da carta constitui uma ignorância do significado do Juramento dos militares de «defender a Pátria até à última gota de sangue». Isto não inclui, nem significa uma submissão incondicional a chefes em que não se confia. A obediência militar não é cega, é reflectida e esclarecida. A acção militar é um trabalho de equipa, em que todos colaboram. Se um militar receber uma ordem que acha não ser adequada, deve chamar a atenção do seu chefe e, se este insiste, pode queixar-se dele. Actualmente, o Tribunal Penal Internacional (TPI) responsabiliza militares que tenham, cometido crimes de guerra ou contra os direitos humanos, mesmo que o tenham feito no cumprimento de ordens. Logo, tem de haver confiança nos dois sentidos. Não fiquem os ignorantes da ética militar chocados com o uso da palavra confiança pelo General Viegas.

Não imagino que seja possível um grupo de militares aceitarem partir para uma acção de alto risco, da qual possam não regressar, sob o comando de um chefe em quem não confiem por ser insensato, desequilibrado e incompetente. A confiança, a lealdade, a camaradagem, a honestidade, a coerência, o falar verdade, a honra, o espírito de equipa, o espírito de sacrifício e de missão são factores de grande importância. Hoje não são viáveis militares submissos, ignorantes ou manipuláveis, nem comandantes autoritários, ditatoriais, a chefiar homens esclarecidos. Quando aparecem chefes assim, os subordinados perdem a confiança neles; foi o que sucedeu com Silva Viegas.

Isto não é «inversão da cadeia de comando militar», é a ética militar. Comandar não é mandar; é, isso sim, «mandar com», isto é, congregar, coordenar vontades e esforços para atingir um objectivo comum a todos, para benefício dos interesses nacionais, para defender a Pátria, à qual devotam todo o seu esforço até à última gota de sangue.

E que dizer das referências insolentes aos generais reformados que dedicaram à Pátria uma vida de trabalho sério e digno, colocando sempre acima de tudo os reais interesses nacionais? Tal referência é a demonstração do culto da mediocridade, tendo em mira a destruição de tudo o que tem valor. E não venha a defender-se que todos pertencem a «uma família política opositora da coligação vencedora nas urnas», pois alguns desses generais foram promovidos por governos desta família. Mas, como bons militares, não ficaram subservientes à «família política». Acima de partidos e de pessoas, está o Estado Português.

E não venha o autor da carta querer enlamear o nome de Ramalho Eanes, atribuindo-lhe o papel de estafeta que se teria prestado estupidamente a servir de moço de recados dos velhos generais. Ramalho Eanes mostrou-nos claramente que não é homem para se prestar a tarefas que não perfilhe.

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