quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Autocrítica de um cidadão-poeta. 030111

(Publicado no «Público», 11 de Janeiro de 2003)

Fiquei muito sensibilizado quando vi e ouvi na televisão o cidadão Manuel Alegre a lamentar os estragos que teve na sua linda casa nas margens do rio Águeda, devido às cheias. Embora, como alguns jornalistas da televisão diziam, as pessoas já estejam habituadas a sofrer, de vez em quando, os efeitos das chuvas mais intensas e persistentes, é compreensível que muita gente se queixe de mais um azar lhes bater à porta. Por isso, ao contrário de palavras que tenho ouvido, concordo que o cidadão Manuel Alegre, tal como os outros, evidenciasse o seu desconforto perante os prejuízos sofridos. É que num Estado de direito e democrático, os cidadãos são todos iguais perante a lei, perante o poder soberano, todos podendo lamuriar-se.

Porém, não me pareceu correcto que o mesmo cidadão se insurgisse contra o Estado. É que, neste caso, ele deve ter-se esquecido que ele próprio, como deputado, é Estado. Ele, com os seus pares, no Parlamento, segundo órgão de soberania, são responsáveis por legislar e controlar os actos governativos por forma a garantir segurança aos cidadãos, por forma a reduzir os riscos de estes sofrerem graves prejuízos com as cheias. Portanto, o cidadão Manuel Alegre, acusou publicamente o deputado Manuel Alegre de não ter tomado medidas para que aquilo não lhe tivesse acontecido com tanta gravidade. É o inconveniente das pessoas usarem dois chapéus!

Mas esse inconveniente não era de esperar do ilustre poeta Manuel Alegre, pensador, homem que sabe trabalhar dextramente com as ideias e transformá-las em palavras escritas que são o deleite de muitos portugueses. Se não me choquei em ver e ouvir o cidadão Manuel Alegre lamentar os estragos sofridos, fiquei, pelo contrário, muito espantado ao ver o pensador e literato esquecer-se que é uma figura do Estado, do Parlamento, e fazer uma auto-crítica pública tão assanhada. E isto, para não dizer que houve muito boa gente, mais prejudicada em percentagem da totalidade do seu património, e portanto, com mais razões para criticar os seus representantes nos órgãos de soberania e que, no entanto, se mostrou mais conformada com a sua falta de sorte.

Enfim, mais uma vez se tornou evidente que a literatura é ficção. E que o mundo não progride pela mão de poetas que vivem num mundo virtual. Na China actual, o poder está nas mãos de engenheiros e não na de pessoas que jogam com as palavras mais ou menos floreadas. Por isso, tem tido, na última década, uma invejável taxa de crescimento sustentado.

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