No campo das ideias é seguida a regra das cerejas, vem sempre atrás outra parecida. Depois do post «A elite e a arraia miúda», chega agora este em que se transcreve o texto seguinte, seguido de uma Nota:
Os intocáveis
Jornal de Notícias, 2 de Novembro de 2009, por Mário Crespo
O processo Face Oculta deu-me, finalmente, resposta à pergunta que fiz ao ministro da Presidência Pedro Silva Pereira - se no sector do Estado que lhe estava confiado havia ambiente para trocas de favores por dinheiro. Pedro Silva Pereira respondeu-me na altura que a minha pergunta era insultuosa.
Agora, o despacho judicial que descreve a rede de corrupção que abrange o mundo da sucata, executivos da alta finança e agentes do Estado, responde-me ao que Silva Pereira fugiu: Que sim. Havia esse ambiente. E diz mais. Diz que continua a haver. A brilhante investigação do Ministério Público e da Polícia Judiciária de Aveiro revela um universo de roubalheira demasiado gritante para ser encoberto por segredos de justiça.
O país tem de saber de tudo porque por cada sucateiro que dá um Mercedes topo de gama a um agente do Estado há 50 famílias desempregadas. É dinheiro público que paga concursos viciados, subornos e sinecuras. Com a lentidão da Justiça e a panóplia de artifícios dilatórios à disposição dos advogados, os silêncios dão aos criminosos tempo. Tempo para que os delitos caiam no esquecimento e a prática de crimes na habituação. Foi para isso que o primeiro-ministro contribuiu quando, questionado sobre a Face Oculta, respondeu: "O Senhor jornalista devia saber que eu não comento processos judiciais em curso (…)". O "Senhor jornalista" provavelmente já sabia, mas se calhar julgava que Sócrates tinha mudado neste mandato. Armando Vara é seu camarada de partido, seu amigo, foi seu colega de governo e seu companheiro de carteira nessa escola de saber que era a Universidade Independente. Licenciaram-se os dois nas ciências lá disponíveis quase na mesma altura. Mas sobretudo, Vara geria (de facto ainda gere) milhões em dinheiros públicos. Por esses, Sócrates tem de responder. Tal como tem de responder pelos valores do património nacional que lhe foram e ainda estão confiados e que à força de milhões de libras esterlinas podem ter sido lesados no Freeport.
Face ao que (felizmente) já se sabe sobre as redes de corrupção em Portugal, um chefe de Governo não se pode refugiar no "no comment" a que a Justiça supostamente o obriga, porque a Justiça não o obriga a nada disso. Pelo contrário. Exige-lhe que fale. Que diga que estas práticas não podem ser toleradas e que dê conta do que está a fazer para lhes pôr um fim. Declarações idênticas de não-comentário têm sido produzidas pelo presidente Cavaco Silva sobre o Freeport, sobre Lopes da Mota, sobre o BPN, sobre a SLN, sobre Dias Loureiro, sobre Oliveira Costa e tudo o mais que tem lançado dúvidas sobre a lisura da nossa vida pública. Estes silêncios que variam entre o ameaçador, o irónico e o cínico, estão a dar ao país uma mensagem clara: os agentes do Estado protegem-se uns aos outros com silêncios cúmplices sempre que um deles é apanhado com as calças na mão (ou sem elas) violando crianças da Casa Pia, roubando carris para vender na sucata, viabilizando centros comerciais em cima de reservas naturais, comprando habilitações para preencher os vazios humanísticos que a aculturação deixou em aberto ou aceitando acções não cotadas de uma qualquer obscuridade empresarial que rendem 147,5% ao ano. Lida cá fora a mensagem traduz-se na simplicidade brutal do mais interiorizado conceito em Portugal: nos grandes ninguém toca.
NOTA: Este é mais um dos textos a que fomos habituados pelo jornalista Mário Crespo, semanalmente no Jornal de Notícias. Sem floreados desnecessários, com preocupação de isenção, rigor e utilidade pública, com os olhos postos no interesse nacional, aponta sempre o dedo de forma muito perspicaz e arguta aos factos mais relevantes, inserindo-os num conceito de ética e civismo, ao mais alto nível.
Os políticos têm características próprias raramente dignas de serem apontadas como paradigmas a pessoas decentes, pelo que nada vindo deles nos deve surpreender, o que não significa que nos devamos calar coniventemente. É preciso denunciar as contradições que usam para ocultar os «pecados» dos elementos da oligarquia.
O ministro Silva Pereira que fala ostensivamente de democracia, não se inibiu de, no início do Governo anterior, dizer na TV que «o povo deu-nos a maioria absoluta para decidirmos como quisermos», e não referiu submissão ao seu programa eleitoral apresentado a sufrágio, nem ao programa de governo apresentado na AR nem aos interesses nacionais. Agora o partido está no Governo com apenas pouco mais de 20 por cento dos votos dos cidadãos potenciais eleitores (inscritos nas listas). Não pode alegar que tem o apoio de todos os portugueses, pois só pode contar com um em cada cinco.
E, por falar em características dos políticos, eles mostram-se dominados fortemente pela ambição do enriquecimento por qualquer meio, como mostra o texto, e seria interessante saber quantos portugueses foram inscritos nas listas concorrentes às três últimas eleições (europeias, legislativas e autárquicas). Devem representar uma larga percentagem da população nacional. Isto mostra que o objectivo desejado, os benefícios dele resultantes, o pertencer aos «intocáveis» e «essenciais», é compensador do esforço das campanhas e dos impropérios, insinuações e suspeitas de que são alvo. O Vara e muitos outros subentendidos no texto podem explicar o fito das candidaturas e as compensações do «sacrifício» de servir o País, de tal forma.
Como refere Mário Crespo, a corrupção prejudica o Estado, todos os portugueses. Com efeito, na actividade económica quem paga os lucros, os luxos e as «atenções» são os clientes, os utentes ou no preço ou na má qualidade dos serviços. Ora veja-se o volume da corrupção e do enriquecimento ilícito que existe entre os políticos e ex-políticos a todos os níveis. É dinheiro retirado indevidamente dos cofres do Estado e do bolso dos pobres através dos impostos e de toda a actividade económica.
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