domingo, 24 de janeiro de 2010

Preparar o futuro

Para os amigos visitantes que gostaram do tema abordado nos posts Geração perdida? Não e Jovens desejam preparar o futuro sugiro a leitura atenta do artigo de Manuel Maria Carrilho em que demonstra ser oportuno aproveitar a crise profunda e generalizada em que agora vivemos para romper as inércias e rotinas das instituições,realizando uma metamorfose de que saia um mundo melhor, para o que cada um deve assumir ser actor da mudança.

Metamorfoses
Por Manuel Maria Carrilho, Diário de Notícias, 14 de Janeiro de 2010

"É preciso que cada um seja a mudança que gostaria de ver no mundo"

Mas afinal há ou não há, na crise que vivemos, uma diferença e uma gravidade especiais? Todos pensamos que sim, apesar de queremos crer que não. Mas há - e pelo menos por três razões.

A primeira é que, como se tem visto desde o Verão de 2008, não há para esta crise nenhuma solução imediata que não agrave, a prazo, o problema. Ora, uma verdadeira solução não é a que adia o problema, é a que o elimina. E, até aqui, o que temos visto não é isso: a enorme dívida privada tornou-se numa imensa dívida pública, transformando os Estados nos prováveis agentes da próxima bolha, que se antecipa bem mais difícil de enfrentar do que a última. Até pela crescente perplexidade dos cidadãos face à lógica de privatização dos lucros e socialização das perdas que se tem observado por todo o lado.

A segunda razão que faz da crise actual (e refiro-me ao mundo ocidental, no sentido lato do termo) algo de muito distinto do que aconteceu noutras circunstâncias é a sua vivida e persistente generalização a todos os sectores. Alguém é hoje capaz de indicar uma actividade, uma área que não esteja em crise? Que seja abordável pelos seus agentes ou pela opinião pública em termos que não sejam os da "crise em que hoje vive o sector"?

A crise tornou-se numa lente de leitura do mundo contemporâneo, da sua inteligibilidade, que os media por vezes intensificam até níveis de dramatização exasperantes. Real ou imaginada - e quantas vezes ela é ficcionalmente alimentada - a crise aparece como o horizonte inultrapassável do nosso tempo.

Olhe-se para a educação ou para a justiça, para o emprego ou os valores, para a saúde ou para a segurança: o que é que não está, e por todo o lado, "em crise"? Com o risco, claro, de que com esta grelha se deixe simplesmente de ver o que não encaixa nela, condenando o que não for diagnosticado "em crise" à irrelevância, ou mesmo à inexistência.

A terceira razão aponta para uma situação de fundo, de matriz indiscutivelmente civilizacional, sem a consideração da qual não se compreenderá nada do que se passa e pouco se fará com eficácia. É que o que faz a diferença, hoje, é que chegámos ao extremo de um ciclo de transformações que foi sem dúvida o mais intenso, mas também talvez o mais perturbador, da história do homem.

É que em pouco mais de um século mudámos de mundo, mas não mudámos de instituições. Basta notar que nos tornámos urbanos, tendo o mundo agrícola ocidental passado, em média, de 70% para 2% da população. Que a população mundial saltou de 2 para 6,5 mil milhões de pessoas. Que a revolução da mobilidade alterou completamente a noção de espaço e a revolução da conectividade modificou profundamente as noções de comunidade e de colectivo. Que a esperança de vida aumentou constantemente a um ritmo inédito e que a dor física, que historicamente constituiu um dos aspectos nucleares da experiência humana, quase desapareceu. A lista poderia alongar-se indefinidamente, enchendo todas as páginas deste jornal.

E, contudo, apesar destas gigantescas mudanças, por todo o lado persistem as mesmas instituições - as escolas, os partidos, o direito, a administração, etc. -, bem como as ideias que vivem presas às inércias e às rotinas dessas instituições. No plano internacional, poderia dizer--se o mesmo, basta olhar para a ONU, para o FMI, etc.. A única excepção foi, neste plano, a oportuna criação do G20, cujo trabalho poderá ser da maior importância se for no sentido do exemplo, isto é, de aplicar já no seu âmbito aquilo que, por diversas razões, é impossível fazer aceitar ao nível global. E, deste modo, poder contribuir para a futura institucionalização de um Conselho de Segurança Económico mundial, um grande sonho do visionário Jacques Delors.

Lembremo-nos que foi sempre nas épocas mais complexas e difíceis que ocorreram as metamorfoses mais surpreendentes - e isso pode acontecer de novo. Sobretudo porque, se durante séculos o homem dependeu do mundo e poucas coisas dependiam dele, a sua dependência não é, agora, face à natureza, mas perante tudo aquilo que - quer se trate das alterações climáticas ou das vicissitudes do mercado - ele próprio criou.

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