Este país não é para corruptos
Visão. 29 de Abr de 2010. Ricardo Araújo Pereira
Portugal é um país em salmoura. Ora aqui está um lindo decassílabo que só por distracção dos nossos poetas não integra um soneto que cante o nosso país como ele merece.
"Vós sois o sal da terra", disse Jesus dos pregadores. Na altura de Cristo não era ainda conhecido o efeito do sal na hipertensão, e portanto foi com o sal que o Messias comparou os pregadores quando quis dizer que eles impediam a corrupção. Se há 2 mil anos os médicos soubessem o que sabem hoje, talvez Jesus tivesse dito que os pregadores eram a arca frigorífica da terra, ou a pasteurização da terra. Mas, por muito que hoje lamentemos que a palavra "pasteurização" não conste do Novo Testamento, a referência ao sal como obstáculo à corrupção é, para os portugueses do ano 2010, muito mais feliz. E isto porque, como já deixei dito atrás com alguma elevação estilística, Portugal é um país em salmoura: aqui não entra a corrupção - e a verdade é que andamos todos hipertensos.
Que Portugal é um país livre de corrupção sabe toda a gente que tenha lido a notícia da absolvição de Domingos Névoa. O tribunal deu como provado que o arguido tinha oferecido 200 mil euros para que um titular de cargo político lhe fizesse um favor, mas absolveu-o por considerar que o político não tinha os poderes necessários para responder ao pedido. Ou seja, foi oferecido um suborno, mas a um destinatário inadequado. E, para o tribunal, quem tenta corromper a pessoa errada não é corrupto - é só parvo. A sentença, infelizmente, não esclarece se o raciocínio é válido para outros crimes: se, por exemplo, quem tenta assassinar a pessoa errada não é assassino, mas apenas incompetente; ou se quem tenta assaltar o banco errado não é ladrão, mas sim distraído. Neste último caso a prática de irregularidades é extraordinariamente difícil, uma vez que mesmo quem assalta o banco certo só é ladrão se não for administrador.
O hipotético suborno de Domingos Névoa estava ferido de irregularidade, e por isso não podia aspirar a receber o nobre título de suborno O que se passou foi, no fundo, uma ilegalidade ilegal. O que, surpreendentemente, é legal. Significa isto que, em Portugal, há que ser especialmente talentoso para corromper. Não é corrupto quem quer. É preciso saber fazer as coisas bem feitas e seguir a tramitação apropriada. Não é acto que se pratique à balda, caso contrário o tribunal rejeita as pretensões do candidato. «Tenha paciência», dizem os juízes. «Tente outra vez. Isto não é corrupção que se apresente.»
NOTA: Portugal tem óptimos advogados. Quanto aos juízes não quero fazer eco daquilo que toda a gente diz. Quanto à qualidade das leis, a educação que me incutiram desde pequenino, não me permite dizer aqui, por escrito, o que seria justo. O certo é que, em vários casos mediáticos recentes, tem havido crimes, bem materializados, com o corpo de delito visível, palpável, mas as características das provas apresentadas pecavam por pormenores incipientes, incompreensíveis para a lógica de um leigo, mas que as tornavam nulas. O crime existiu, o corpo de delito estava ali, ninguém tinha dúvidas, mas o cadáver foi visto pela testemunha que espreitou pela janela e escutou uma confidência do criminoso àquele que lhe encomendou o homicídio, mas aconteceu que a testemunha não estava a agir legalmente quando espreitou pela janela nem quando ouviu a confidência. Logo, por falta de prova legal, o crime não existiu e o suspeito não foi promovido a criminoso, foi absolvido, foi ilibado de culpa e a vítima foi assassinada sem ter havido assassino, porque a lei assim determinou.
Desculpe, Ricardo, este arremedo sem a sua «elevação estilística»
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