Transcrição do blog A Voz da Abita:
Dado terem-se verificado algumas dificuldades na hiperligação para este artigo transcreve-se na íntegra, com a devida vénia, reconhecendo alguma perda de qualidade na sua formatação:
TEM SENTIDO MANTER FORÇAS ARMADAS EM PORTUGAL?
Público. 09/03/2013. Por José Pacheco Pereira. Historiador.
O modo como o Governo trata as Forças Armadas revela-se na funcionalização dos seus membros.
Em vez de andar a fazer cortes avulsos nas Forças Armadas, como se fosse possível cortar nas Forças Armadas como se corta numa qualquer repartição pública - que é o máximo que o pensamento governamental alcança -, dever-se-ia fazer uma outra discussão muito mais séria, muito mais importante, muito mais útil e muito menos ambígua: a de saber se Portugal precisa de ter Forças Armadas ou não. E, em função da resposta, tirar as consequências.
É uma discussão completamente legítima do ponto de vista democrático, uma opção possível, com consequências como todas as opções, mas que os portugueses podem querer fazer. Seria uma discussão muito mais sadia do que o que se está a fazer, que é, com muitas proclamações governamentais patrioteiras, muita parada em dias da pátria, muita revista às tropas na entrada das cerimónias, construir-se um ser disforme que não serve para coisa nenhuma. E é exactamente porque as pessoas percebem que é assim que se acaba por cavar ainda mais o fosso entre os portugueses e as suas Forças Armadas e dar razão aos que questionam se, sendo o que são, as nossas Forças Armadas têm qualquer sentido e justificam o dinheiro que com elas se gasta.
O modo como o Governo trata as Forças Armadas, a completa ausência de um pensamento sobre o seu sentido, revela-se na funcionalização dos seus membros, como se se tratasse de uns funcionários públicos particularmente inúteis que andam a brincar às guerras imaginárias, cheios de chefes e sem soldados, não podendo defender o país, nem defender os portugueses, nem invadir ninguém, com armas cada vez mais obsoletas e sem dinheiro sequer para as disparar, sem equipamento e sem combustíveis, com reduzidos efectivos por metas financeiras sem nexo e coerência operacional, não servindo para nenhuma missão.
Não vale a pena estar a escrever com pompa e circunstância "conceitos estratégicos de defesa nacional", se nada daquilo serve para qualquer estratégia, nem para a defesa, nem tem objectivo nacional. Duvido até que se tratá-lo como "conceito" não seja uma ofensa à filosofia. O que conta nesta triste situação é que o Governo português de José Sócrates, com o beneplácito de Passos Coelho e Paulo Portas, permitiu que um corpo de funcionários internacionais nos impusesse um documento em inglês que incluía medidas sobre as Forças Armadas, algo que mostra como a demissão da soberania não é apenas o resultado da bancarrota, mas também de uma perda de qualquer vergonha nacional por parte da elite do poder. Nenhum país que se respeitasse a si próprio permitiria que, num documento daquele teor, se estipulassem medidas sobre as Forças Armadas, mesmo que fosse normal que em sede própria pensasse em reduzir os seus gastos. Só que o fazia dentro e não por imposição de fora.
Claro que quando se trata de um corpo como as Forças Armadas como sendo apenas uma parte da função pública, suscita-se uma resposta que é do mesmo tipo: os militares tornam-se corporativos e reagem como se fossem uma corporação, defendendo salários e regalias. Mas o que é que se esperava, são tratados como funcionários menores de uma instituição sem utilidade pública, cara e inútil, ameaçada de extinção, e eles ficam-se? Não ficam, porque no actual contexto quem se fica perde duas vezes, até porque o Governo só é forte com os mais fracos. Não conseguiram os médicos e os reitores das universidades concessões e recuos quando começaram a protestar publicamente? É por isso que a situação entre os militares é grave, mas mais grave ainda é a situação das Forças Armadas nessa entidade tão estragada que é hoje Portugal.
Tudo isto traduz um caminho de desagregação identitária que uma geração sem saber nem memória faz com o maior dos desplantes e inconsciência. Vai a par com um surto de federalismo subserviente, a aceitação de um Parlamento que perdeu o poder orçamental, a contínua deslocação das decisões de governação para a burocracia de Bruxelas. Se o caminho é este, como é que se poderia esperar que houvesse uma qualquer ideia sobre as Forças Armadas? O problema é que haver há, só não pode ser enunciada. A ideia é que as Forças Armadas são um anacronismo, demasiado caro, um corpo esquisito que não fala a linguagem da modernidade, e se rege por valores, essa coisa antiquada e tão pouco económica.
Infelizmente o que vai acontecer é que se está a criar a cama para que estas questões decisivas para a nossa identidade e soberania acabem por ser decididas na base de uma lógica de avanços e recuos, assente no mediatismo. Aliás, é um pouco o mesmo que acontece em muitas outras áreas da governação. Eu explico com um exemplo de alguma coisa que pode ocorrer amanhã.
Portugal tem responsabilidade pelos salvamentos numa parte importante do Atlântico Norte, resultado da posição das ilhas atlânticas e do grande espaço geográfico do mar português no coração desse oceano. É uma missão atribuída às Forças Armadas, em particular à Marinha e à Força Aérea, que mobiliza uma série de recursos, nomeadamente helicópteros com grande autonomia de voo, que podem deslocar-se quase até às fronteiras dos EUA. Nessa parte do Atlântico passa uma parte importante do tráfego marítimo.
Portugal reivindicou sempre, no quadro das suas relações internacionais, militares e civis, o controlo desse espaço, não apenas para cuidar de acidentes, mas também para defrontar ameaças à segurança e ataques terroristas, considerando que, se for outro país, seja a Espanha, seja os EUA, a assumir esse controlo, isso significa, queira-se ou não, um enfraquecimento da soberania nacional numa área particularmente sensível do território nacional. Mesmo, senhores economistas da escola governamental, numa área com enorme valor económico, porque inclui o controlo sobre o mar português e da sua zona económica exclusiva. Acresce que as fronteiras dessa zona entre a Madeira e as Canárias estão sujeitas a controvérsia, pelo que nem tudo é assim tão pacífico.
Não custa imaginar que, com a contínua deterioração dos meios militares, seja possível alguma coisa correr mal. Por exemplo, pode haver um acidente na área de nossa responsabilidade e os meios operacionais, que já estão esticados até ao limite, não terem a capacidade de garantir o salvamento de pessoas e bens ou um desastre ecológico qualquer. Vamos admitir, nesse caso, uma mais que provável condenação, pela imprensa estrangeira, espanhola, britânica, americana, com maior intensidade conforme a nacionalidade do país cujo barco ou nacionais sejam as vítimas, da incapacidade portuguesa para assegurar as suas responsabilidades. Será uma vergonha para a nossa imagem (como a bancarrota e os PIGS...) e, ou perdemos as nossas prerrogativas de controlo por incompetência, ou, se o escândalo tiver impacto nacional, lá vamos comprar apressadamente mais qualquer meio que já devíamos ter antes e que o corte da troika e dos seus executantes nacionais levaram a perder. Por surtos, como é habitual.
O mesmo pode acontecer numa disputa com o nosso vizinho espanhol, porque Deus pode dar nozes a quem não tem dentes, mas sem dentes não se comem nozes. Não estamos no tempo do Ultimato, nem se vai comprar um navio de guerra por subscrição nacional, mas talvez - e digo talvez porque nem disso já tenho a certeza - pode ser que haja um sobressalto nacional. Mas será tarde mais e vai-se acabar por engolir em seco e assobiar para o lado. No fundo para que é que servem as Selvagens? Que valor económico têm?
Se não quiserem Forças Armadas, e as substituírem seja por uma guarda costeira em vez de uma marinha, ou uma polícia pesada em vez de um exército, ou uma frota para salvamentos em vez de uma aviação, podem ter a certeza que tudo isto acontecerá. E bem se pode protestar, mas não haverá meios para ir buscar portugueses à Guiné, se houver um golpe de Estado sangrento que ameace os nossos compatriotas lá residentes, não se pode parar um avião terrorista que resolva atacar numa visita de um chefe de Estado estrangeiro de relevo, etc., etc.
Podemos contratar um desses exércitos privados que para aí existem, mas é muito caro, podemos fazer como fez a Islândia, que entregou aos EUA sua segurança, mas que não controla o seu espaço aéreo e vê os aviões russos a passar à vontade, depois de os americanos se irem embora. Poder, podemos, e vamos mais a caminho disso que outra coisa. Mas continuar como estamos, um pé dentro e outro fora, é que é pouco saudável. Para além das tentações corporativas, os militares sabem disso muito bem e por isso estão, eles também, indignados.
Imagem de arquivo
Dado terem-se verificado algumas dificuldades na hiperligação para este artigo transcreve-se na íntegra, com a devida vénia, reconhecendo alguma perda de qualidade na sua formatação:
TEM SENTIDO MANTER FORÇAS ARMADAS EM PORTUGAL?
Público. 09/03/2013. Por José Pacheco Pereira. Historiador.
O modo como o Governo trata as Forças Armadas revela-se na funcionalização dos seus membros.
Em vez de andar a fazer cortes avulsos nas Forças Armadas, como se fosse possível cortar nas Forças Armadas como se corta numa qualquer repartição pública - que é o máximo que o pensamento governamental alcança -, dever-se-ia fazer uma outra discussão muito mais séria, muito mais importante, muito mais útil e muito menos ambígua: a de saber se Portugal precisa de ter Forças Armadas ou não. E, em função da resposta, tirar as consequências.
É uma discussão completamente legítima do ponto de vista democrático, uma opção possível, com consequências como todas as opções, mas que os portugueses podem querer fazer. Seria uma discussão muito mais sadia do que o que se está a fazer, que é, com muitas proclamações governamentais patrioteiras, muita parada em dias da pátria, muita revista às tropas na entrada das cerimónias, construir-se um ser disforme que não serve para coisa nenhuma. E é exactamente porque as pessoas percebem que é assim que se acaba por cavar ainda mais o fosso entre os portugueses e as suas Forças Armadas e dar razão aos que questionam se, sendo o que são, as nossas Forças Armadas têm qualquer sentido e justificam o dinheiro que com elas se gasta.
O modo como o Governo trata as Forças Armadas, a completa ausência de um pensamento sobre o seu sentido, revela-se na funcionalização dos seus membros, como se se tratasse de uns funcionários públicos particularmente inúteis que andam a brincar às guerras imaginárias, cheios de chefes e sem soldados, não podendo defender o país, nem defender os portugueses, nem invadir ninguém, com armas cada vez mais obsoletas e sem dinheiro sequer para as disparar, sem equipamento e sem combustíveis, com reduzidos efectivos por metas financeiras sem nexo e coerência operacional, não servindo para nenhuma missão.
Não vale a pena estar a escrever com pompa e circunstância "conceitos estratégicos de defesa nacional", se nada daquilo serve para qualquer estratégia, nem para a defesa, nem tem objectivo nacional. Duvido até que se tratá-lo como "conceito" não seja uma ofensa à filosofia. O que conta nesta triste situação é que o Governo português de José Sócrates, com o beneplácito de Passos Coelho e Paulo Portas, permitiu que um corpo de funcionários internacionais nos impusesse um documento em inglês que incluía medidas sobre as Forças Armadas, algo que mostra como a demissão da soberania não é apenas o resultado da bancarrota, mas também de uma perda de qualquer vergonha nacional por parte da elite do poder. Nenhum país que se respeitasse a si próprio permitiria que, num documento daquele teor, se estipulassem medidas sobre as Forças Armadas, mesmo que fosse normal que em sede própria pensasse em reduzir os seus gastos. Só que o fazia dentro e não por imposição de fora.
Claro que quando se trata de um corpo como as Forças Armadas como sendo apenas uma parte da função pública, suscita-se uma resposta que é do mesmo tipo: os militares tornam-se corporativos e reagem como se fossem uma corporação, defendendo salários e regalias. Mas o que é que se esperava, são tratados como funcionários menores de uma instituição sem utilidade pública, cara e inútil, ameaçada de extinção, e eles ficam-se? Não ficam, porque no actual contexto quem se fica perde duas vezes, até porque o Governo só é forte com os mais fracos. Não conseguiram os médicos e os reitores das universidades concessões e recuos quando começaram a protestar publicamente? É por isso que a situação entre os militares é grave, mas mais grave ainda é a situação das Forças Armadas nessa entidade tão estragada que é hoje Portugal.
Tudo isto traduz um caminho de desagregação identitária que uma geração sem saber nem memória faz com o maior dos desplantes e inconsciência. Vai a par com um surto de federalismo subserviente, a aceitação de um Parlamento que perdeu o poder orçamental, a contínua deslocação das decisões de governação para a burocracia de Bruxelas. Se o caminho é este, como é que se poderia esperar que houvesse uma qualquer ideia sobre as Forças Armadas? O problema é que haver há, só não pode ser enunciada. A ideia é que as Forças Armadas são um anacronismo, demasiado caro, um corpo esquisito que não fala a linguagem da modernidade, e se rege por valores, essa coisa antiquada e tão pouco económica.
Infelizmente o que vai acontecer é que se está a criar a cama para que estas questões decisivas para a nossa identidade e soberania acabem por ser decididas na base de uma lógica de avanços e recuos, assente no mediatismo. Aliás, é um pouco o mesmo que acontece em muitas outras áreas da governação. Eu explico com um exemplo de alguma coisa que pode ocorrer amanhã.
Portugal tem responsabilidade pelos salvamentos numa parte importante do Atlântico Norte, resultado da posição das ilhas atlânticas e do grande espaço geográfico do mar português no coração desse oceano. É uma missão atribuída às Forças Armadas, em particular à Marinha e à Força Aérea, que mobiliza uma série de recursos, nomeadamente helicópteros com grande autonomia de voo, que podem deslocar-se quase até às fronteiras dos EUA. Nessa parte do Atlântico passa uma parte importante do tráfego marítimo.
Portugal reivindicou sempre, no quadro das suas relações internacionais, militares e civis, o controlo desse espaço, não apenas para cuidar de acidentes, mas também para defrontar ameaças à segurança e ataques terroristas, considerando que, se for outro país, seja a Espanha, seja os EUA, a assumir esse controlo, isso significa, queira-se ou não, um enfraquecimento da soberania nacional numa área particularmente sensível do território nacional. Mesmo, senhores economistas da escola governamental, numa área com enorme valor económico, porque inclui o controlo sobre o mar português e da sua zona económica exclusiva. Acresce que as fronteiras dessa zona entre a Madeira e as Canárias estão sujeitas a controvérsia, pelo que nem tudo é assim tão pacífico.
Não custa imaginar que, com a contínua deterioração dos meios militares, seja possível alguma coisa correr mal. Por exemplo, pode haver um acidente na área de nossa responsabilidade e os meios operacionais, que já estão esticados até ao limite, não terem a capacidade de garantir o salvamento de pessoas e bens ou um desastre ecológico qualquer. Vamos admitir, nesse caso, uma mais que provável condenação, pela imprensa estrangeira, espanhola, britânica, americana, com maior intensidade conforme a nacionalidade do país cujo barco ou nacionais sejam as vítimas, da incapacidade portuguesa para assegurar as suas responsabilidades. Será uma vergonha para a nossa imagem (como a bancarrota e os PIGS...) e, ou perdemos as nossas prerrogativas de controlo por incompetência, ou, se o escândalo tiver impacto nacional, lá vamos comprar apressadamente mais qualquer meio que já devíamos ter antes e que o corte da troika e dos seus executantes nacionais levaram a perder. Por surtos, como é habitual.
O mesmo pode acontecer numa disputa com o nosso vizinho espanhol, porque Deus pode dar nozes a quem não tem dentes, mas sem dentes não se comem nozes. Não estamos no tempo do Ultimato, nem se vai comprar um navio de guerra por subscrição nacional, mas talvez - e digo talvez porque nem disso já tenho a certeza - pode ser que haja um sobressalto nacional. Mas será tarde mais e vai-se acabar por engolir em seco e assobiar para o lado. No fundo para que é que servem as Selvagens? Que valor económico têm?
Se não quiserem Forças Armadas, e as substituírem seja por uma guarda costeira em vez de uma marinha, ou uma polícia pesada em vez de um exército, ou uma frota para salvamentos em vez de uma aviação, podem ter a certeza que tudo isto acontecerá. E bem se pode protestar, mas não haverá meios para ir buscar portugueses à Guiné, se houver um golpe de Estado sangrento que ameace os nossos compatriotas lá residentes, não se pode parar um avião terrorista que resolva atacar numa visita de um chefe de Estado estrangeiro de relevo, etc., etc.
Podemos contratar um desses exércitos privados que para aí existem, mas é muito caro, podemos fazer como fez a Islândia, que entregou aos EUA sua segurança, mas que não controla o seu espaço aéreo e vê os aviões russos a passar à vontade, depois de os americanos se irem embora. Poder, podemos, e vamos mais a caminho disso que outra coisa. Mas continuar como estamos, um pé dentro e outro fora, é que é pouco saudável. Para além das tentações corporativas, os militares sabem disso muito bem e por isso estão, eles também, indignados.
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